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A Primeira Guerra Mundial e a Guerra dos Trinta Anos estão indissociavelmente ligadas, mas o sistema ignora a ligação e arrisca caprichosamente uma sequela terrível
s celebrações centenarias da Primeira Guerra Mundial, que ocorreram pouco antes da pandemia, foram um espetáculo triste de observar. Um exercício que demonstrou a ignorância histórica do grande público, bem como uma total incapacidade de compreender a principal lição de ambas as guerras mundiais. De acordo com a narrativa do sistema, a I Guerra Mundial (1GM) foi um choque de nacionalismos cujo trágico rescaldo desencadeou uma nova era de tratados e convenções de paz que acabaram por resultar na formação das Nações Unidas, da União Europeia e de todos os sacramentos normativos da fé universalista cosmopolita. Na realidade, a destruição dos impérios mais “multiculturais” do continente e o ressurgimento do nacionalismo romântico na Europa de Leste provam que a guerra fez exatamente o contrário. Os povos eslavos ocidentais, bem como os eslavos meridionais, viveram uma época de independência e prosperidade e até os impérios coloniais da Europa Ocidental deram origem a numerosos nacionalismos no mundo em desenvolvimento, com a decadência que se seguiu às duas guerras mundiais. Assim, se a Primeira Guerra Mundial deve servir para condenar um modelo político, esse modelo é precisamente o das experiências construtivistas pós-modernas, que se acredita revisionisticamente serem inovações “que põem fim à história”… Tal como os Habsburgos e os Romanov se consideravam a vanguarda de civilizações iluminadas que englobavam numerosos povos “unidos na diversidade”, o mesmo acontece com os tecnocratas supranacionais de hoje. O Presidente francês Macron fez eco destes sentimentos ao denunciar o nacionalismo como a causa da guerra. https://pt.euronews.com/2018/11/12/emmanuelmacron-deixa-o-alerta-contra-o-nacionalismo Outra razão para frustração é o facto de ninguém parecer compreender o que tornou as guerras mundiais tão destrutivas e que lições devemos retirar delas. Alguns historiadores apelidaram o período das duas guerras mundiais de “Segunda Guerra dos Trinta Anos”. https://www.historytoday.com/archive/europessecond-thirty-years-war Seria bom que os especialistas tivessem refletido sobre as razões para tal neste último aniversário do centenário. De facto, proporcionalmente à população total do continente, a guerra mais mortífera da história europeia foi a Guerra dos Trinta Anos. https://www.livescience.com/59302-germanythirty-years-war-grave-revealed.html Como as celebrações da Grande Guerra têm precedência na mentalidade ideológica das elites políticas do Ocidente, poucos se aperceberam de que 2018 marcou também o 400o aniversário do inicio da Guerra dos Trinta Anos (G30A). A relevância desta outra conflagração prende-se igualmente com as suas caraterísticas destrutivas e normativas. No século XVII, a Reforma e a sua reacção católica, a Contra-Reforma, estavam em curso desde há um século. Como “a política está a jusante da cultura”, a natureza iconoclasta e inquisitorial dos dois movimentos infiltrou-se lentamente nas lideranças políticas. Uma primeira tentativa do imperador dos Habsburgos mais poderoso da História, Carlos V, para purgar militarmente a Reforma, resultou numa vitória católica na Guerra da Esmalcalda. No entanto, a Reforma não era uma heresia vulgar e a vitória militar não se traduziu numa mudança normativa. Muito pelo contrário, o acordo de paz assinado em Augsburgo permitiu a liberdade de religião e instituiu o princípio “cuius regio, eius religio” – a soberania dita a fé. Infelizmente, no século que decorreu entre o Waterloo de Napoleão e a morte do arquiduque Fernando em Sarajevo, teve lugar a revolução industrial. A Guerra Civil Americana e a Guerra Russo-Japonesa já tinham dado a entender que o próximo conflito seria travado industrialmente. A mobilização de massas sem precedentes, da Primeira Guerra Mundial, resultou também no recrutamento de civis para a indústria, na economia de guerra e na administração demográfica centralizada, ou seja, nos fundamentos da guerra total. Uma evolução que Paul Kennedy caracterizou como “(…) a chegada da democracia de massas e o fim do Estado ”guarda-noturno“”. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03071847709421314 A massificação dos exércitos e, com ela, do impacto do esforço de guerra na frente doméstica, conduziu naturalmente à perda do ethos que tinha caracterizado os exércitos profissionais e as conspirações principescas: a procura amoral e desapaixonada do interesse nacional com meios limitados à la Richelieu deu assim lugar a objectivos morais maximalistas por qualquer meio. O cidadão-soldado não lutaria pela mais alta comissão, pela promoção aristocrática ou pelas prerrogativas reais, lutaria apenas por um bem maior. Assim, tornou-se necessário que o inimigo se tornasse o mal maior. Este mecanismo estrutural viria a ser aperfeiçoado durante a Segunda Guerra Mundial e o seu aperfeiçoamento do ethos totalitário. Hannah Arendt explorou esta questão e advertiu que o “interesse próprio exagerado” era uma racionalização académica que não se ajustava à realidade do totalitarismo, que era muitas vezes simbolicamente letal e não logicamente letal. https://dcw25.wordpress.com/2015/02/24/between-freedom-tyranny-and-totalitarianism-hannah-arendt-and-leo-strauss-on-preserving-the-moral-difference-between-east-and-west/ No fundo, o imperativo maniqueísta do recrutamento de cidadãos-soldados era generalizado. Hoje em dia, chamamos-lhe “narrativa”, mas a premissa é a mesma: a democracia de massas exige, necessariamente, um conto moral – uma inércia dialética, o oleo das engrenagens de decisão. A G30A e a 1GM diferem no maniqueísmo envolvido. No século XVII, o conto moral persuadiu os líderes da necessidade de fazer a guerra, quer por justiça, quer apenas pela necessidade de impedir que o seu próprio poder normativo fosse transferido para outros príncipes. No século XX, os dirigentes que desejavam empreender uma ação militar tinham de recorrer ao maniqueísmo para persuadir as suas massas eleitorais. Atualmente, os exércitos foram reprofissionalizados, mas os votos continuam a emanar das massas. O problema atual parece residir no facto de a classe dirigente, recrutada a partir dessas mesmas massas, ter sido doutrinada por um sistema educativo deficiente que, privado de diversidade de pensamento, se tornou laxista e se limitou a repetir histórias maniqueístas de raciocínio circular. Os monarcas educados pelos jesuítas e luteranos do século XVII careciam de um juízo pragmático, tal como acontece atualmente com os tecnocratas educados pela teoria crítica. Compreender este raciocínio é, ao mesmo tempo, compreender porque é que a Primeira Guerra Mundial se tornou total e porque é que não foi possível uma paz negociada. Se um determinado conflito militar tem de ser um exercício sagrado de reivindicações morais absolutas, então segue-se que uma determinada guerra tem necessariamente de ser uma guerra para acabar com todas as guerras… sempre. Os objectivos maximalistas não são fungíveis, não podem ser negociados. Não é de admirar, portanto, que a Segunda Guerra Mundial tenha sido uma guerra total de ideologias e que, por sua vez, tenha dado lugar a uma Guerra Fria ideológica global. Por isso, quando hoje em dia a NATO decide alterar os seus princípios para incluir imperativos humanitários e democráticos, por exemplo, o Ocidente está a incorrer numa perigosa sacralização do poder militar. O Ocidente não retira as suas forças nunca, de lado nenhum, não recusa potenciais correligionários e nenhuma das suas violações do direito internacional é ilegal. Afinal de contas, o Ocidente, por si só e no seu conjunto, representa o pináculo do progresso moral da civilização humana. Negociar com a Rússia, negociar com a Arábia Saudita, chegar a acordo com a Coreia do Norte, tudo isso se torna haram. Por outro lado, se surgir uma resistência interna, esta deve ser expurgada, mesmo que as normas constitucionais exijam uma rutura ou que as regras básicas da diplomacia exijam uma excepção, para que os hereges sejam mais adequadamente ostracizados. A Primeira Guerra Mundial começou como um conflito normal e transformou-se num conflito excepcionalista que só terminou em 1945. Tanto 1918 como 1945 foram caracterizados por soluções maximalistas: a rendição incondicional. A Guerra dos Trinta Anos é a lição esquecida de que os objectivos absolutos terminam invariavelmente em ganhos relativos e numa paz negociada. A diferença entre as duas doutrinas é que uma globaliza a guerra e massifica os seus custos e a outra atenua-os. As celebrações do Armistício são tristes, não só pelas vidas perdidas mas pela incapacidade de aprender com as decisões que resultaram num rescaldo milenar. Honrar os mortos não é um sacramento, é uma responsabilidade.